quinta-feira, 29 de outubro de 2009




Dentes e pernas.

Tinha então a idade de 22 anos, era inteligente e até bem quista. Às vezes, acreditava que chegaria a obter sucesso na vida, e essa crença vinha de uma inesgotável fonte de livros de auto ajuda que se empilhavam ao lado da sua cama. Tinha poucos sonhos, por vezes queria apenas ser amada por um homem nem feio, nem bonito, nem alto, nem baixo, nem rico, nem pobre, e diante desse desfile de "não qualidades", ia se mantendo sozinha. Mantivera-se sozinha desde sempre: filha única, mãe morta e pai desaparecido do seu R.G. Tivera, logo cedo, que trabalhar na rua de calçados da Rua 18, e fazia isso como se fosse de vital importância para a sua existência. E era.
A sua enfadonha e rodopiante vida seguia o mesmo curso inerte de sempre quando, numa certa manhã, deparou-se com as tais manchinhas brancas. Eram, na verdade, amareladas e tomavam o canto esquerdo do seu pescoço. No primeiro instante, riu imaginando aquelas manchas tomando-lhe a face inteiramente, uma espécie de anti-Dorotéia, onde a beleza inexistente despedia-se de vez do seu corpo esquálido. No minuto seguinte, deseperou-se e chegou a derramar lágrimas, que logo fizeram cintilar aqueles beijinhos de cloro no tecido da sua pele, mas chorar não lhe serveria de muita coisa, e num raro momento de racionalidade, pensou todas as suas poucas economias e saiu rumo ao primeiro médico que encontrasse, mas, para isso, enrrolou um lenço vermelho no seu pescoço, o qual lhe conferiu a aparência de enfeite natalino.
A consulta médica pareceu-lhe pouco produtiva: apenas algumas orientações e uma interminável lista de remédios. O tratamento até que começou a surtir um tímido efeito, e logo o lenço natalino foi substituído por uma série de colares, que de tão berrantes, chamavam ainda mais a atenção apara as suas ainda perceptíveis manchas. Ao contrário de qualquer pessoa de bom senso, os olhares alheios de nojo lhe faziam fremir de contentamento, sentia-se cada vez mais notada. Como havia esperado tanto ? Ou melhor, como havia esperado que uma doença lhe apontasse a necessidade de tais acessórios que tanto valorizavam o seu colo ? A sequência de colares e olhares lhe deram tanta auto confiança que um dia resolveu ir trabalhar sem colar algum, mas a idéia não pareceu muito boa, de modo que no seu intervalo de almoço, ele retornou para casa como que tomada por uma peculiar cólera. Entrou no seu quarto e livrou-se rapidamente dos livros e dos remédios, e como tudo o que havia lhe restado eram 15 minutos e o lenço vermelho, saiu pela calçada exibindo garbosa o seu adorno natalino, e riu desesperadamente dos olhares qua a aguardavam, das vozes que a seguiam, do seu homem sem predicativos e do seu novo colar de pérolas meio brancas, meio amareladas, encrustadas no seu pescoço, que pouco a pouco, ganhariam mais brilho e beleza.