domingo, 1 de maio de 2016

Iara.

No quarto da casa antiga, o tempo  se fazia imprimir no chão de tacos. As sucessão de bloquinhos de madeira se desmantelava a cada vez que se imprimia um ritmo mais apressado aos passos. Por inúmeras vezes, fui forçado a recompor aquele quebra cabeça impreciso - e rápido. Se ela flagrasse aquela bagunça, certamente falaria por algumas horas dos meus modos.
O banheiro principal vivia impecavelmente limpo e, salva a condição de lavar as mãos antes do almoço, o seu uso era completamente vetado aos "da casa". Além das visitas, todos os outros usavam o cubículo dos fundos, que além da inexistência de luz artificial, não tinha pia - o que nos forçava a uma pequena peregrinação até o lavabo da copa: que frequentemente servia de cama para um cão tão velho quanto as lembranças daquele local.
O almoço ficava pronto religiosamente ao meio dia. Às treze, a mesa estava impecavelmente recomposta: com uma toalha de algodão amarelecido, um vaso de porcelana com umas pequenas rachaduras e algumas flores de plástico - desbotadas pelo sol da tarde, que invadia diretamente a entrada principal.
Sentado no sofá desconfortável da salinha da frente, eu observava aquela dinâmica alheia à minha existência. Sob aquele teto, o tempo passava com uma velocidade cruel: desbotando os quadros das paredes, corroendo o verniz da antiga cadeira de balanço, matando os animais de estimação e os parentes distantes e levando dentes e a cor dos cabelos. Somente a coleção de santos de barro parecia imune à fúria do relógio.
Cresci naquele espaço aprendendo a andar sem pressa e sem barulho, a desviar dos móveis de madeira (sempre impregnados de óleo de peroba). Cresci amando cada minuto da minha infância largado sobre aquele chão, até que a morte da mulher mais velha cerrou para sempre as portas daquela casa.
Sem a mãe, ela restara sozinha entre a sucessão de cômodos demasiadamente grandes. As horas se esticavam e o tempo parecia não passar do lado de dentro. No exterior, ele voava. A pintura da fachada se encardiu, o mato tomou conta do passeio lateral e os cadeados dos portões cobriram-se de ferrugem.
Lá dentro, ela se ocupava de uma rotina tão particular que, vez ou outra, perdia-se no calendário. As visitas da última semana haviam, na verdade, cruzado a soleira desgastada há quase um ano, mas os potes de doce de banana (feitos pacienciosamente nas tardes de chuva) empilhavam-se na geladeira - não se sabe se por sobra do último encontro familiar ou por esperança dos futuros. A sucessões de frascos de vidros na geladeira, as fatias inteiras dos bolos de milho que eram depositadas no lixo às segundas-feiras e o seu olhar cada vez mais distante denunciavam que ela havia sido confinada na mais completa solidão.
Nunca mais voltei àquela casa. Ela ficara com o menino que passava as tardes debaixo do pé de pitanga - talvez esse tenha sido o melhor presente que eu tenha lhe dado. Ela jamais soubera dos meus planos, dos primeiros beijos, dos amores frustrados e de todas as infindáveis decepções que me esperavam do outro lado da calçada. Sem ela aprendi que pão com açúcar já não era tão eficiente para curar as minhas tristezas e que conversar com formigas e passarinhos não era uma prática bem vista do lado de fora da casa. Mas dela guardei o hábito de, por vezes, me prostrar de pé, olhando o nada e tentando lembrar de algo impossível de ser lembrado.
Um dia, de pura malcriação, ela fechou de vez as trancas da casa de esquina, arrumou as malas e partiu sem se despedir.
Nesse dia, eu perdi a hora do trabalho, me prostrei de pé em alguma avenida movimentada e lembrei do que há muito eu tentava lembrar.
E ri.
Em algum lugar, ela riu junto comigo.