terça-feira, 20 de novembro de 2012

1.68m
70kg
Dentes amarelados devido ao mau uso. Fronte escurecida pela ação do tempo. Lombada levemente desgastada.
Pouquíssimo uso.
QUASE NOVO.
Interior intacto:
sem grifos
sem rabiscos
sem assinaturas
sem letras
e sem história.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Último réquiem para Clarice Lispector

Hoje pela manhã pude te sentir.
Sempre detestei ter de gostar de você. Sempre fui invejoso, e sempre disfarcei a inveja com um patético e pretensioso nariz empinado (já que não me permitia - de modo algum - te citar, alguma coisa tua tinha de carregar comigo) . O problema não era você, nem eu. O problema era o resto, essa chusma que insistia em te lamber e te carregar debaixo do braço sem a menor cerimônia.
As tuas palavras translúcidas eram ecos que vibravam no meu estômago. Nunca socos. A única grosseria que me fizeste foi enfiar-me goela abaixo um morango mentiroso, falso profeta. Morangos, maçãs... parece que você e o seu deus sentem um enorme prazer em ver os reles mortais engasgando-se com frutas lascivas.
Frutas e baratas fazem parte de uma natureza viva que você pintava muito bem. E como era reconfortante odiar-te. A cada leitura escondida, a cada pequena felicidade muito mais odiosa que clandestina... Sabe? Quando pequeno, meu avô me mostrou aquela famosa entrevista em que te fazias volátil. E eu te achei feia, velha e assustadora como uma bruxa. Senti uma enorme antipatia, mas, pouco tempo depois, percebi que havia trocado as bolas, ou os sentimentos juvenis; o que eu sentia era simpatia. Simpatia no seu conceito etimológico - o qual eu só viria a conhecer depois de ter lido meia duzia de teus livros. Sabia por exemplo que perguntas como "você é feliz?" são tão obscenas quanto milhares de alfinetadas. E eu te vi fraca, desabada diante da jactância da menina gorda - agora travestida em repórter - e me vi confuso, sem poder defender-te ou defender-me. Preferimos o silêncio.
Fui ser dublê de leitor, deram-me propriedade e alguma bagagem insípida. Nas leituras da madrugada, sempre fechava teu livro antes do dia amanhecer. Sempre dormia sobre algum devaneio que não me fazia sentido. Acho que não podia suportar alguns clarões que evocavas. Eu era sempre fulminado antes do ponto final.
Mas é que hoje pela manhã, enquanto matava com a ponta do dedo algumas dezenas de formigas, percebi que a matar é bonito. A morte é mais necessária que a vida e por isso morremos e matamos um pouquinho a cada dia.
Você continua morta e empoeirada na frieza da minha estante
Mas é que hoje pela manhã, pude te sentir.

quarta-feira, 21 de março de 2012

"Balayés mes amours(...) ou quase um requiem"

Passou anos de sua vida ocupada com um corte de linho. Criara por ele tamanho afeto e tamanha dependência que já não se imaginava sem carregá-lo para todos os lugares. E como pesava! Nem o próprio Atlas seria capaz de suportar o peso daquele emaranhado de linhas virgens.
A uma determinada idade, resolveu que deveria se ocupar em dar forma àquele peso já se fazia inútil - muito embora a vital dependência continuava intacta. Resolveu cortá-lo. Mas, para isso, gastou alguns anos procurando a forma mais bela e os contornos mais perfeitos, e só então de início à empresa que consumiria mais algumas décadas de sua vida. Terminado os reparos, o tecido era mais sobra que arte final. O corte de linho, com uma simetria invejável, reduzira-se a vinte por cento do tamanho do seu tamanho original. E assim, pela primeira vez, viveu dias mais leves. Mas a sensação de incompletude não a deixaria em paz por muito tempo. Sabia perfeitamente que não terminara seus trabalhos; necessitava agora dar uma vida àquela extensão do seu corpo. Quem sabe uni-la de vez à sua carne? Uma camisola nupcial? Não! O tecido era de mais duro. Além disso, já passara da idade de casar. Nesse emaranhado de incertezas, costurou décadas a fio. Entre espetadas nos dedos - que a mantinham cada vez mais acordada - foi perdendo a força, as vistas, os dentes...
O tecido que outrora se apresentava de uma brancura virginal, agora era de um amarelo amargo. E nem as pedras coloridas ou os fios de ouro disfarçaram a perversidade do tempo, que de uma hora para outra resolvera apostar corrida com as mãos trêmulas da Penélope-sem-par. Tal qual a fábula da lebre e da tartaruga, as mãos venceram. Enfim o pedaço de pano transformara-se no mais belo vestido que a mão humana já pudera fazer.
Consciente do seu estado, ela logo percebeu que aquela roupa deveria ser dada à mais bela jovem, cuja beleza resplandeceria ainda mais a obra de arte. Mas para surpresa de todos, a vestimenta não coube em nenhuma jovem do vilarejo, tampouco nas outras - das redondezas -que vieram em busca dos trajes de princesa.
As formas e o tamanho tão perfeitos pareciam não caber em nenhum humano. E de fato não caberia se ela não tivesse a ideia de vesti-lo. Serviu-lhe como uma luva! E ela ficou irremediavelmente fascinada; era a confluência da vida, do tempo e do corpo numa só matéria.
Resolveu que nunca mais o tiraria do corpo. Mas "nunca mais" é um termo bastante inoportuno para quem gastara a vida inteira com preparativos. Três dias depois foi enterrada com a sua mortalha de uma vida inteira. O linho se decompôs primeiro, sua pele depois.



Ps1: Os dentes que ela perdera, eram todos meus.
Ps2: Tecidos e amores querem-se conforme a disposição que dão a eles.
Ps3: A mortalha continua costurada ao meu corpo. Sinto que nunca caberá em outra pessoa.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Micro Contos Policiais.

I

A anoréxica deprimida morreu ao descobrir que o arsenal de comprimidos ingeridos eram, na verdade, pílulas de açúcar.


II

Sozinha no ponto de ônibus, a bailarina dançou.