quarta-feira, 21 de março de 2012

"Balayés mes amours(...) ou quase um requiem"

Passou anos de sua vida ocupada com um corte de linho. Criara por ele tamanho afeto e tamanha dependência que já não se imaginava sem carregá-lo para todos os lugares. E como pesava! Nem o próprio Atlas seria capaz de suportar o peso daquele emaranhado de linhas virgens.
A uma determinada idade, resolveu que deveria se ocupar em dar forma àquele peso já se fazia inútil - muito embora a vital dependência continuava intacta. Resolveu cortá-lo. Mas, para isso, gastou alguns anos procurando a forma mais bela e os contornos mais perfeitos, e só então de início à empresa que consumiria mais algumas décadas de sua vida. Terminado os reparos, o tecido era mais sobra que arte final. O corte de linho, com uma simetria invejável, reduzira-se a vinte por cento do tamanho do seu tamanho original. E assim, pela primeira vez, viveu dias mais leves. Mas a sensação de incompletude não a deixaria em paz por muito tempo. Sabia perfeitamente que não terminara seus trabalhos; necessitava agora dar uma vida àquela extensão do seu corpo. Quem sabe uni-la de vez à sua carne? Uma camisola nupcial? Não! O tecido era de mais duro. Além disso, já passara da idade de casar. Nesse emaranhado de incertezas, costurou décadas a fio. Entre espetadas nos dedos - que a mantinham cada vez mais acordada - foi perdendo a força, as vistas, os dentes...
O tecido que outrora se apresentava de uma brancura virginal, agora era de um amarelo amargo. E nem as pedras coloridas ou os fios de ouro disfarçaram a perversidade do tempo, que de uma hora para outra resolvera apostar corrida com as mãos trêmulas da Penélope-sem-par. Tal qual a fábula da lebre e da tartaruga, as mãos venceram. Enfim o pedaço de pano transformara-se no mais belo vestido que a mão humana já pudera fazer.
Consciente do seu estado, ela logo percebeu que aquela roupa deveria ser dada à mais bela jovem, cuja beleza resplandeceria ainda mais a obra de arte. Mas para surpresa de todos, a vestimenta não coube em nenhuma jovem do vilarejo, tampouco nas outras - das redondezas -que vieram em busca dos trajes de princesa.
As formas e o tamanho tão perfeitos pareciam não caber em nenhum humano. E de fato não caberia se ela não tivesse a ideia de vesti-lo. Serviu-lhe como uma luva! E ela ficou irremediavelmente fascinada; era a confluência da vida, do tempo e do corpo numa só matéria.
Resolveu que nunca mais o tiraria do corpo. Mas "nunca mais" é um termo bastante inoportuno para quem gastara a vida inteira com preparativos. Três dias depois foi enterrada com a sua mortalha de uma vida inteira. O linho se decompôs primeiro, sua pele depois.



Ps1: Os dentes que ela perdera, eram todos meus.
Ps2: Tecidos e amores querem-se conforme a disposição que dão a eles.
Ps3: A mortalha continua costurada ao meu corpo. Sinto que nunca caberá em outra pessoa.

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