domingo, 17 de abril de 2011

Trecho de uma carta fechada (e nunca entregue), ou um "Ensaio sobre o recalque".

(...)"Primeiro acreditei que era amor, e isso eu tiro de letra: o platonismo sempre fora a condição básica da minha existência. O que eu havia me esquecido - e que causou toda a minha danação - é que existe um acordo tácito, entre os acometidos por tal infortúnio, que diz que os corpos dos dois envolvidos não podem, em hipótese alguma, se encontrar no mundo sensível. E esse, antes de crime, foi o meu castigo. A gota de óleo de Psiquê me inflamou por inteiro. O amor de Ariadne por Dionísio, ao se concretizar, foi transfigurado em desprezo. E eu te percebi indiferente e distante. E eu me percebi fraco e perecível, e me percebi mortal, e quis levar essa nova condição a cabo. Mas Chronos, o mais sábio de todos (nunca um epíteto me fora tão válido) se compadeceu do meu sofrimento artificial e fez-te passado. Sumiste num sopro do tempo. Hoje acredito que estejas apenas convertido em lembrança.
Mas para mim é pouco. Continuo a procura de ti. Quero diariamente saber-te. Anseio desesperadamente encontrar-te. Desejo visceralmente ver-te passar, perecer como uma uva. Como a uva verde em que eu, raposa ferida, te converti. Um dia você apodrece e cai do pé. E eu poderei, enfim, te dar o desprezo que nunca sentirei.
A vingança é um prato que se come estragado. Por isso eu tenho andado tão bilioso. Os grãos de ressentimento não satisfazem a minha dieta."