segunda-feira, 24 de junho de 2013

Três cartas achadas.


Dia 1 - Ainda afetado pelo ocorrido na véspera


  Ontem percebi teu incômodo por minha presença. Acaso conseguiste notar-me? Viste como eu me desesperava a cada vez que sumias do meu campo de visão? Percebeste cada movimento milimetricamente calculado? Ontem, até as minhas respirações foram por você.
  Mas o que houve? Não me reconheces? Acaso esqueceste cada plano, cada segundo de futuro que eu programei detalhadamente para nós dois? Não percebeste que eu atei o seu futuro ao meu por uma eternidade tão egoísta quanto esquizofrênica?
Ah, sim. Claro! Perdoe-me. Não era você. Era só parte de você; sua casca que eu tomei de empréstimo para compor a minha história. Oh, por favor, não se ofenda, eu também tenho te faltado com verdade. Na verdade, tenho sido o que não sou. Tenho apresentado-me com um artificialismo quase que amador. Mas não faz mal, partes de nós convivem num plano ideal repleto de verdades e sentimentos absolutos. Elas nos redimem.
Quanto a você, basta que sorria as vezes. Eu, pintor de destinos, capturarei a tua figura e a transportarei para uma realidade que jamais serias capaz de compreender.


Dia 2 - Agarrando fios de lembrança


Já se passaram três dias e eu não sei o que realmente me passa. Em outros tempos, tinha por hábito contar as luas que nos separavam - e eram tantas! Hoje, contudo, creio que tenha superado a tua ausência; a tua proposital omissão, muito embora eu tenha quase certeza de que me vigias, que ouves a minha respiração, assim como eu fazia contigo. Somos dois ouvidos atentos em lados contrários de uma mesma porta.
Queria ver-te mais uma vez. Queria fitar-te os olhos e caçar dentro deles a certeza de que posso seguir sozinho, de que posso recobrar a lucidez e ver-me como sempre fui. Hoje eu pensei em trair-te. Pensar em trair é trair com os olhos e com todo o corpo. Acho que estás esgotando-se da minha pele. Não queria perder-te assim rapidamente: nos dias de ócio, quando fechava os olhos, a tua bela figura esnobe me distraía. Não sei como será daqui pra frente, também não se como seria de fosse de outra maneira. O destino é uma invenção que existe. O amor também.

ps: E se você me amasse loucamente?
     E se eu, por jactância, recusasse?

Dia 3 - Resignado e mudo.


Hoje eu chego ao quinto dia - poupei-me as mãos no domingo. Minhas cansadas mãos que tanto imaginaram tocar-te, recusaram-se a escrever-te no dia de ontem.
Tenho estado muito sonolento, e o que outrora era embate, agora é fácil vitória de Morfeu. Durmo um sono pesado, quase não sonho e quando vislumbro alguma coisa, não passa de um borrão cinza. Poderia ser teu rosto? Não sei. Tenho medo que o meu inconsciente, por puro ressentimento, tenha resolvido desfigurar-te.
Hoje choveu, mas eu não chorei. Tenho acreditado que o meu choro é como uma grande tempestade: só acontece umas poucas vezes e depois de muito acúmulo. O teu desprezo me renderia no máximo um orvalho. Sou muito acostumado ao desprezo: encaro cada virada de rosto, ou cada boa tarde sem vontade como um sorriso de uma pessoa sem dentes. Um dia virarei-te o rosto. Depois morrerei por dentro.
Hoje pensei impropriedades. Pensava como seria se encostasse meu nariz na tua barriga. Não senti calafrio, nem senti as faces ferverem. Estariam essas sensações afastadas da imaginação? Seriam elas dispositivos ligados somente ao ato concreto? Creio que morrerei sem saber.

ps: O que te vale mais: o peso de uma dúvida ou a leveza concreta da decepção?

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